sábado, 25 de dezembro de 2010

José, Maria e a morte de sua criança no sertão nordestino

Maria deu à luz sob o olhar insuspeito de uma vaca e um jegue – figurante sempre presente nessas ocasiões há quase dois mil anos. José acompanhava a cena de perto, amparado pelas paredes de barro e um cigarro de palha. A fumaça esbranquiçada fugia pela porta e fundia-se à paisagem queimada de sol. A pele do bebê à lavoura, que morreu ainda no pé por carência d`água. Mal presságio… Ao contrário da outra criança – do outro José com a outra Maria – não recebeu reis, muito menos presentes. Contudo, para ambos o destino já estava escrito.
Os anos se passaram e ela cismou em ficar do mesmo tamanho. Talvez por causa da água e da comida. Ou da falta de ambos. Certo mesmo é que adoeceu. O pai, desesperado, correu de um lado para o outro e levou-a para se tratar. Diarréia, disenteria, olhar longo, profundo, perdido. Os doutores fizeram o que podiam e mandaram-na de volta para casa. Naquela tarde, rastejou pelo chão da sala, agonizando. Maria avisou ao marido que a criança estava indo embora. Mas sabiam que de nada adiantaria, pois há tempos a fome vinha comendo-a por dentro. Então, José, resignado, foi à cidade fazer a única coisa que estava ao seu alcance: pedir uma caixão emprestado, prática comum por aquelas bandas. Quando voltou, a filha já estava morta.
Essa cena se repetiria mais cinco vezes na vida da família Bezerra, que visitei anos atrás. Assim como eles, muitos Josés e muitas Marias enterraram a fome de seus filhos pelo nordeste brasileiro. No rádio e na TV sempre chegaram notícias de que o motivo disso tudo era das secas, que castigam o sertão de tempos em tempos. Mas os simples cordéis, pendurados nos varais das feiras livres nos finais de semana, contam mais a verdade, algo do tipo: “Doutor, vixe, água não é o problema! / Aqui com a seca e com jeitinho nós se arresolve / O que dói mesmo e é difícil de entender / É a falta de terra, disso ninguém se comove / Falta não, me corrijo antes de tudo / Tem muita por aí, mas é do coroné o seu uso”.
Cerca de 11,2 milhões de pessoas (ou 5,8% da população no país) conviveram com a fome em 2009 – um milhão delas, crianças de até quatro anos de idade – por falta de dinheiro para comprar comida. A informação é da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Os programas sociais de distribuição de renda e suas ações correlatas, programas de Saúde da Família, além das atividades de organizações da sociedade civil como a Pastoral da Criança, melhoraram muito esse quadro. Sem contar a geração de empregos e a própria estabilidade econômica. A quantidade de pessoas em situação de inseguração alimentar grave passou de 8,2% para os 5,8% já citados entre 2004 e 2009, ou seja, cerca de 7 milhões de pessoas melhoraram de vida. Mas a fome ainda persiste e é exemplar que diversos veículos de comunicação tenham trazido radiografias sobre o tema no país neste final de ano.
A cantilena é antiga, mas garantir terra e condições de produção, com apoio técnico e financiamento, e facilitar o escoamento das mercadorias é uma das soluções poderosas e não pontuais para o problema. Sem contar que isso ajuda a garantir mais alimentos na mesa do brasileiro – uma vez que a pequena agricultura familiar é responsável por boa parte dos produtos in natura que consumimos.
O problema é que tanto na história cristã quanto no caso do sertão de Alagoas descrito acima, as coisas aconteceram como aconteceriam. A diferença é que não é tao difícil reescrever o fim das histórias curtas, que se encerram precocemente, do segundo caso. Avançamos, mas precisamos fazer a parte que falta para que a história mude de vez e casos de desnutrição infantil seguidos de morte não ocorram.
Essas famílias podem até ser ignoradas pelo “céu”, que não manda a chuva, mas se estrepam mesmo é com a ação direta do pessoal de carne e osso (que está de olho em suas terras ou sua força de trabalho), a inação do Estado e a complacência de muitos de nós.
Dito isso, desejo a todos um Feliz Natal.

Evoé!


enviado por Roberto Grossi


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