Hoje me sinto um pouco mais órfão do que o normal; perdemos o mestre e sábio Moacy Cirne, um dos maiores pesquisadores e simbolo da luta pelo reconhecimento das HISTORIAS EM QUADRINHOS como arte no Brasil. Sua perda, me trouxe a reflexão sobre a existência e do por que nos sentirmos tão desanparados perante o adeus, sem tempo de volta daqueles a quem amamos e admiramos. Nos últimos tempos tive tantas perdas pessoais que venho me sentindo tragicamente só, apesar de minha família e amigos sempre estarem próximos de mim e de me alegrarem muito; pois eu os amo. Contudo, cada perda sempre evoca uma reflexão particular minha do fantasma da ausência e de nossa limitada existência nesse mundo e de nosso sempre presente sentimento de saudade. Essa reflexão me levou a crer que o ser humano não passa de um diminuto hiato de existência em um espaço tão vasto de possibilidades que sua brevidade nada deveria significar para as leis físicas. Entretanto, sabemos que existimos, ou melhor, intuímos isso. E desse modo passo, a cada perda, a me perguntar por que continuamos a vivenciar incessantemente esse ciclo, e nos pegamos a questionar qual o motivo dessa lógica absurda que é a vida.
Os existencialistas observam que a existência precede a essência, isto é, que para pormos nossa marca do
mundo como indivíduos necessariamente devemos existir para, em seguida, nos constituirmos como pessoas e seres existenciais. Penso que isso explicaria alguma coisa sobre o por que somos obrigados a existir e nos constituirmos como seres, acredito que isso é uma possível resposta como tantas outras que procuram entender essa grande quimera. Mas não é ela toda. Por mais que se raciocine sobre o assunto continuamos apenas amontoando as perguntas enquanto as respostas continuam a ser incompletas. A morte ou o morrer nos trás aquele medo de que, por um momento parece absurdo continuar, e pensamos que não vale mais a pena seguir adiante. Estamos sós nesse vácuo deixado, e a primeira vista não há nenhuma forma de preenche-lo, por que essa lacuna é impreenchível. Se seguirmos esse pensamento,como deveríamos reagir diante de afirmativas que dizem de ninguém ser insubstituível. Experimente dizer isso para um filho que perdeu os pais, ou para um irmão que perdeu os seus, ou mais ainda, para alguém que você admira e respeita e saber que ela era, e é tão única que por mais que procurasse por todo o universo nunca acharia alguém igual, mas talvez, apenas, parecido a ela.
Assim, penso que a morte, nesses momentos solitários em que sinto sua presença com mais enfase, não é algo negativo e nem positivo...simplesmente, é a forma natural das coisas acontecerem. De fato, observando a natureza constatei que as arvores morrem e que os pássaros, tigres, elefantes, rios e montanhas também possuem seu fim. A morte sempre é interpretada como um fim em si mesma. Onde as pessoas que não acreditam em deidades ou um deus buscam nessa afirmação a sua explicação para esse suposto fim. Já os religiosos a ligam não a um fim, mas a um novo começo em outra vida que, por sua vez, esta vinculada a uma ética subjetiva que condicionara sua vida eterna ou sua danação e aniquilação.
Entretanto, o que tenho observado, experimentando na carne, esse processo do viver é que nossa existência assemelha-se a uma vela, com uma chama tênue que balança ao sabor do vento, uma ora para lá outra para cá e que sabe que mais cedo ou mais tarde, devido ao vento ou simplesmente ter chegado ao fim a vela, se findará. O senhor Moacy Cirne certamente poderia me dizer aqui, e até me chamar a atenção, que no cinema temos um exemplo disso que estou escrevendo; e de fato temos! Em Blade Runner perto do final o Replicante Roy Batty, interpretado pelo ator Rutger Hauer, faz uma observação sobre a brevidade da vida e concluiu que a vida deve ser tida como o bem mais importante da existência ou sagrado (se é que posso utilizar essa palavra aqui) que poderíamos ter. Por que mesmo sendo caçado e o seu algoz esta a ponto de perder a sua vida, ele o salva. Não o sauvou por que era humano por fazer aquilo, mas por que era uma vida que iria se perder....como uma lagrima perdida em uma chuva, um hiato na existência, um raio passageiro aniquilado no tempo.
Me pergunto por que ele tinha feito aquilo, essa pergunta fiz quando assisti Blade Runner pela decima quarta vez...e a resposta só veio anos após, depois de ter me formado e ter me sentado para pensar sobre o assunto. Deus sabia que eu ia precisar amadurecer isso para poder encarar o futuro, e foi esse conhecimento em saber que somos uma fagulha perdida na existência que me sustentou durante os momentos de tempestade. Me lembro, hoje que isso foi assunto de um trabalho que fiz para o professor Ramos Coelho na época que ministrou a disciplina Estética filosófica e que ficou impressionado com o trabalho que fiz. Ora, aquele trabalho, me recordo, era na realidade uma grande reflexão daquele meu fatídico encontro indireto com a morte. Naquele momento havia perdido familiares e isso era uma experiência que até então eu não tinha tido. Contudo, hoje me vejo novamente passando por esse encontro indireto, através de alguém tão familiar e admirado como o senhor Moacy Cirne e novamente sou convocado a refletir sobre isso. O resultado final a que cheguei, após toda essa reflexão, como filosofo, pesquisador sobre o assunto, quadrinista e ser humano fadado a existência, É de que levando em consideração a natureza, a religião somos obrigados como seres humanos a seguir postulados parecidos com os da física clássica, a saber, ninguém morre, apenas nos transformamos em alguma outra coisa melhor na existência. E pelo menos isso, para mim, me trás algum conforto.
Desse modo, me sinto honrado e feliz, não pela morte desse fantástico homem que amou a literatura, poesia, cinema e quadrinhos. Pois nesse sentido, me sinto triste e de luto. Contudo, minha felicidade parte do princípio de saber que o seu legado como pesquisador de cinema, poesia e, principalmente, quadrinhos, continua vivo entre nós e através de seus alunos e quadrinistas. Desse modo, em certo sentido ele vive e esta presente em cada quadrinho produzido no RN e no Brasil. Esse sentimento, também pode ser estendido para o momento em que o conheci e me provocou a sensação de que, a experiência dos anos o melhoraram sumamente de tal forma que aprendi e muito nos encontros que tive com ele. Percebi, através de mister Cirne que a experiência nos qualifica a ter uma opinião solida e feliz, além de mostrar que a vida não deve ser encarada como um fardo, mas como uma alegre canção que deve ser escutada e vivida.
Para o senhor Moacy Cirne todas as artes, e isso incluía as historias em quadrinhos, eram arte em todo o sentido. Não havia nenhuma separação em sua cabeça dessas artes. Para ele, todas eram irmãs e cúmplices, que se interligavam, ora em um momento, ora em outra. Me tornei seu admirador, e assumimos em determinada medida que somos seus admiradores, sua partida nos deixa tristes, contudo deve ser encarada como aquele pai que em um momento ou outro deve deixar o seu filho seguir em diante enquanto fica a pajear de longe seus rebentos. Estamos, trabalhando, criando, aprendendo e errando, ficando alegres e tristes, mas sumamente, mister Cirne, estamos vivendo a vida, buscando a alegria de criar, imaginar, distender a realidade em prol da fantasia. Estamos seguindo os seus passos e em pisadas largas e firmes. Penso que de agora em diante, a maior parte das obras, na realidade todas elas de uma forma ou de outra é uma homenagem não velada ou velada mesmo, a sua pessoa. Sua presença, no mundo dos quadrinhos, estará sempre viva e a cada lançamento de quadrinhos dos autores Brasileiros e do RN a sua lembrança estará presente. Continuamos trabalhando, mestre Cirne e o senhor, do lugar onde esta, deve esta muito feliz. Até mais mestre, nós do quadrinho continuamos a caminhar e a sonhar.
Assim, no âmbito de minhas atribuições, com o coração em luto me despeço dando um breve; até logo ao mestre e sábio. Esperando quem sabe, algum dia, onde sua pessoa esteja, possamos nos encontrar e bater aquele papo alegre sobre os quadrinhos do Tico tico, cinema, poesia e quem sabe falar do Fluminense, lembrando sempre que sou flamenguista....ah! mas como ele diria, estamos em casa!
Agradecido a todos, por este mui humilde servo
Renato de Medeiros Jota