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quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O cinema pelo cinema: A invenção de Georges Méliès

[Aos que gostam da surpresa, esse texto pode conter spoilers]

Hugo (2011) é uma cinebiografia disfarçada de fantasia infantil, que usa majestosamente a ingenuidade do personagem Hugo (Asa Butterfield) para narrar uma preciosa parte da história do cinema, infelizmente pouco conhecida do público. Adaptado do livro infantil “A invenção de Hugo Cabret” de Brian Selznick pelo cinéfilo e cineasta (isso é redundante, mas é verdade) Martin Scorsese, Hugo é o primeiro filme com a tecnologia 3D da carreira aclamada do diretor que também estreia na categoria de filmes infantis. Segundo Scorsese durante sua carreira seu objetivo é alternar suas produções entre um filme para o público e outro que satisfaça seu gosto. Parece-me que Hugo alcança pela primeira vez os dois objetivos ao mesmo tempo. Sendo assim um filme sensível de alcance universal. 
O plano-sequencia que abre o filme, nos carrega por uma estação de trem ambientada na Paris dos anos 30 em direção ao brilho dos atentos olhos azuis do menino Hugo. Junto com a sonhadora Isabelle (Chloë Grace) vai protagonizar uma fantástica aventura que nos transporta para uma viagem emocionante pela magia do primeiro cinema (cinema mudo). A trama conta ainda com o Inspetor (Sacha Baron) e seu doberman Maximillian que fazem o papel do “vilão” atrapalhado e seu fiel cão de guarda nas sequencias que trazem um tom descontraído e ágil para o filme.

O que começa com uma aventura infantil se mostra uma aula de história do cinema e uma homenagem que se desenrola ao longo de quase todo o enredo, usando-se de imagens originais dos primeiros filmes e ainda várias referências à história do cinema.
O filme faz referência a muitos clássicos do cinema desde seu construtor dourado que nos remete ao filme Metrópolis (1926) de Fritz Lang, até a realidade trazida pelos efeitos 3D que resgatou o choque provocado pela primeira sessão no cinematógrafo dos irmãos Lumière, com a exibição de A chegada do trem na estação (L'Arrivée d'un train en gare de La Ciotat - 1895) em 28 de dezembro de 1895 no Salão Grand Café, em Paris, onde o até então ilusionista Georges Méliès assim como alguns poucos convidados teve a chance de conhecer a mágica do cinema pela primeira vez.
O enredo do filme se divide entre duas fortes raízes cinematográficas: claramente bem representado pelo cenário da estação de trem a raiz do cinema “documental” inspirado no trabalho dos irmãos Lumière tinha como propósito explorar os recursos da imagem em movimento com o intuito de chocar os espectadores pela veracidade das imagens. E por outro lado a raiz do cinema ficcional criado pelo ilusionista Georges Méliès tendo como sua obra-prima Viagem à lua (Le voyage dans la Lune - 1902), no qual explora pela primeira vez a magia de contar histórias através de imagens.

Ainda de maneira sutil e apaixonante o filme aborda literatura como campo fértil da arte de fabular, de onde o cinema sempre retira inspiração. Todo o clima saudosista da trama provoca nostalgia e saudade de um tempo que não vivemos. E ainda motiva o resgate e a conservação das obras-primas, tanto esquecidas pelo tempo.

A metáfora do tempo, imperdoável e necessário segue por todo o longa-metragem, o tic-tac dos relógios proporcionam um ritmo envolvente e contínuo aos espectadores. Por um pouco mais de duas horas de duração o filme nos tira a preocupação com o tempo, nos transportando para uma dimensão perceptiva que só a linguagem do cinema consegue habitar... Durante a projeção em seus mais de 24 frames por segundo o tempo que tanto nos comanda e orienta, é concebido como uma ficção criada por nós mesmos, ao passo que nos aprisiona e aliena.

Em Hugo o ato de dar corda no relógio simboliza o poder que o homem acredita ter sobre o tempo. As várias cenas dos relógios lembram o famoso quadro, "A persistência da memória” de Salvador Dali, no qual exibe relógios que escoam como o tempo que não podemos dominar  e que apenas a memória consegue resgatar. Para isso o homem inventa fotografia e cinema, a fim de aprisionar o tempo no espaço e resgatá-lo quando for conveniente. A temática, tempo e memória, aparece claramente como plano de fundo do filme, o que trás um reflexão madura para o roteiro. 

Um filme em 3D é sem dúvida para os cineastas mais conservadores um enorme desafio, utilizar nova tecnologia e ao mesmo tempo conseguir destacar seu estilo e características, se fazendo reconhecível em meio ao glamour e aos clichês dos inúmeros filmes que usam dessa tecnologia para se tornar recordistas em bilheteria.
Enfim, toda essa desarmonia que surge entre técnica e arte, mais precisamente, entre um blockbusters e o cinema de autor nos mostra que os avanços da técnica na arte só vêm trazer horizontes cada vez mais amplos ao mundo ilimitado da arte cinematográfica. Martin Scorsese em Hugo torna nítido que a tecnologia é o elo que une as artes em uma só tela, mostrando seu aprimorado domínio na fábrica de produzir sonhos coletivos.
O apego ao seu idioma talvez tenha sido o único pecado do “americaníssimo” Scorsese, por se passar na Paris dos anos 30 e resgatar os primórdios do cinema europeu com a figura do francês George Mélies, careceria da fidelidade que só o idioma francês poderia dar. Ler as plaquinhas do cenário da estação de trem não foi suficiente para ambientar puramente essa fábula, felizmente isso não tira o brilho dourado que reluz da película genuinamente americana.
Com um perfeito 3D que não se apoia em meros efeitos gráficos, Scorsese vai além reinventando a nossa realidade, quando trabalha profundidade e planos, dando aos personagens uma película de “contos de fada”. Além disso, conta com a fotografia impecável de Robert Richardson (o mesmo de ilha do medo), com destaque especial para a iluminação das cenas da estação.

Um filme que discute além de tudo o nosso propósito no que tange à vida “real” e mesmo assim não necessariamente te impede de sonhar e viver uma aventura. Desse modo Hugo nos permite fugir das amarras da vida cotidiana num misto entre emoção e aprendizado, num bombardeamento de informações que torna essa arte passiva cada vez mais surpreendente. Sem dúvida merece todas as indicações e premiações, e ganha o posto de melhor filme do ano, até o momento.