[Aos que gostam da surpresa, esse texto pode conter spoilers]
Hugo (2011) é uma cinebiografia
disfarçada de fantasia infantil, que usa majestosamente a ingenuidade do
personagem Hugo (Asa
Butterfield) para narrar uma preciosa parte da história do cinema,
infelizmente pouco conhecida do público. Adaptado do livro infantil “A invenção de Hugo
Cabret” de Brian Selznick pelo cinéfilo e cineasta (isso é redundante, mas é
verdade) Martin Scorsese, Hugo é o primeiro filme com a tecnologia 3D da
carreira aclamada do diretor que também estreia na categoria de filmes
infantis. Segundo Scorsese durante sua carreira seu objetivo é alternar suas
produções entre um filme para o público e outro que satisfaça seu gosto.
Parece-me que Hugo alcança pela primeira vez os dois objetivos ao mesmo tempo.
Sendo assim um filme sensível de alcance universal.
O plano-sequencia que abre o filme, nos carrega por uma estação
de trem ambientada na Paris dos anos 30 em direção ao brilho dos atentos olhos
azuis do menino Hugo. Junto com a sonhadora Isabelle (Chloë Grace) vai protagonizar uma fantástica aventura
que nos transporta para uma viagem emocionante pela magia do primeiro cinema
(cinema mudo). A trama conta ainda com o Inspetor (Sacha Baron) e seu doberman
Maximillian que fazem o papel do “vilão”
atrapalhado e seu fiel cão de guarda nas sequencias que trazem um tom
descontraído e ágil para o filme.
O que começa com uma aventura infantil se mostra
uma aula de história do cinema e uma homenagem que se desenrola ao longo de
quase todo o enredo, usando-se de imagens originais dos primeiros filmes e
ainda várias referências à história do cinema.
O filme faz referência a muitos
clássicos do cinema desde seu construtor dourado que nos remete ao filme Metrópolis (1926)
de Fritz Lang, até a realidade trazida pelos efeitos 3D que resgatou o choque
provocado pela primeira sessão no cinematógrafo dos irmãos Lumière, com a
exibição de A chegada do trem na estação (L'Arrivée d'un train en gare de La
Ciotat - 1895) em 28 de dezembro de 1895 no Salão Grand Café,
em Paris, onde o até então ilusionista Georges Méliès assim como alguns poucos
convidados teve a chance de conhecer a mágica do cinema pela primeira vez.
O enredo do filme se divide entre duas fortes
raízes cinematográficas: claramente bem representado pelo cenário da estação de
trem a raiz do cinema “documental” inspirado no trabalho dos irmãos Lumière
tinha como propósito explorar os recursos da imagem em movimento com o intuito
de chocar os espectadores pela veracidade das imagens. E por outro lado a raiz
do cinema ficcional criado pelo ilusionista Georges Méliès tendo como sua obra-prima Viagem à lua (Le voyage dans la
Lune - 1902), no qual explora pela primeira vez a
magia de contar histórias através de imagens.
Ainda de maneira sutil e
apaixonante o filme aborda literatura como campo fértil da arte de fabular, de
onde o cinema sempre retira inspiração. Todo o clima saudosista da trama
provoca nostalgia e saudade de um tempo que não vivemos. E ainda motiva o
resgate e a conservação das obras-primas, tanto esquecidas pelo tempo.
A metáfora do tempo, imperdoável e necessário segue por todo o
longa-metragem, o tic-tac dos relógios proporcionam um ritmo envolvente e
contínuo aos espectadores. Por um pouco mais de duas horas de duração o filme
nos tira a preocupação com o tempo, nos transportando para uma dimensão
perceptiva que só a linguagem do cinema consegue habitar... Durante a projeção em seus mais de 24 frames por segundo o tempo que tanto nos comanda e orienta, é concebido como uma ficção criada por
nós mesmos, ao passo que nos aprisiona e aliena.
Em Hugo o ato de dar corda no relógio simboliza o poder que o homem acredita ter sobre o tempo. As várias cenas dos relógios lembram o famoso quadro, "A persistência
da memória” de Salvador Dali, no qual exibe relógios que escoam como o tempo que não podemos dominar e que apenas a memória consegue resgatar. Para isso o homem inventa fotografia e cinema, a fim de aprisionar o tempo no espaço e resgatá-lo quando for conveniente. A temática, tempo e memória, aparece claramente como plano de fundo do filme, o que trás um reflexão madura para o roteiro.
Um filme em 3D é sem dúvida
para os cineastas mais conservadores um enorme desafio, utilizar nova tecnologia
e ao mesmo tempo conseguir destacar seu estilo e características, se fazendo
reconhecível em meio ao glamour e aos clichês dos inúmeros filmes que usam
dessa tecnologia para se tornar recordistas em bilheteria.
Enfim, toda essa desarmonia que
surge entre técnica e arte, mais precisamente, entre um blockbusters e o cinema
de autor nos mostra que os avanços da técnica na arte só vêm trazer horizontes
cada vez mais amplos ao mundo ilimitado da arte cinematográfica. Martin
Scorsese em Hugo torna nítido que a tecnologia é o elo que une as artes em uma
só tela, mostrando seu aprimorado domínio na fábrica de produzir sonhos
coletivos.
O apego ao seu idioma talvez
tenha sido o único pecado do “americaníssimo” Scorsese, por se passar na Paris
dos anos 30 e resgatar os primórdios do cinema europeu com a figura do francês
George Mélies, careceria da fidelidade que só o idioma francês poderia dar. Ler
as plaquinhas do cenário da estação de trem não foi suficiente para ambientar
puramente essa fábula, felizmente isso não tira o brilho dourado que reluz da
película genuinamente americana.
Com um perfeito 3D que não se apoia em meros efeitos
gráficos, Scorsese vai além reinventando a nossa realidade, quando
trabalha profundidade e planos, dando aos personagens uma película de “contos
de fada”. Além disso, conta com a fotografia impecável de Robert Richardson (o mesmo de ilha do
medo),
com destaque especial para a iluminação das
cenas da estação.
Um filme que discute além de
tudo o nosso propósito no que tange à vida “real” e mesmo assim não necessariamente te impede de sonhar e viver uma
aventura. Desse modo Hugo nos permite fugir das amarras da vida cotidiana num
misto entre emoção e aprendizado, num bombardeamento de informações que torna
essa arte passiva cada vez mais surpreendente. Sem dúvida merece todas as indicações e premiações, e ganha o posto de melhor filme do ano, até o momento.