ENTREVISTA COM JÚLIO EMILIO BRAZ
PARA O BLOG FASEAFASE.BLOGSPOT.COM
EXPEDIENTE: Weynna Doria, Ceres Lima e
Renato Medeiros
EMENTA:
O objetivo dessas entrevistas visa mostrar o panorâma em que se encontra os
Roteiristas de Historias em Quadrinhos que contribuíram de forma geral para a
formação de um público leitor e consumidor dessa mídia. Nesse sentido,
procuramos saber o que pensam os grandes mestres e escritores desse universo
sobre o momento atual, procurando igualmente traçar um perfil do pensamento e
das influências tanto de Roteiristas “consagrados” como dos noviços na
perspectiva da saber quais os rumos que podemos esperar para as HQs na
contemporaneidade.
BIOGRAFIA:
Júlio Emílio Braz nasceu
em 16 de Abril de 1959, na pequena cidade de Manhumirim, Aos pés da Serra de
Caparaó. Aos cinco anos mudou-se para o Rio de Janeiro, cidade que adotou como
lar. É considerado um autodidata, aprendendo as coisas com extrema facilidade.
Adquiriu o hábito de leitura aos seis anos.
CARREIRA:
Iniciou
sua carreira como Escritor de roteiros para histórias em quadrinhos, publicadas
no Brasil Portugal, Bélgica, França, Cuba e EUA. Já publicou mais de cem
títulos.
Em 1988
recebeu o Prêmio Jabuti pela publicação de seu primeiro livro infanto-juvenil:
SAGUAIRU.
Em 1990 escreveu roteiros para o programa Os
trapalhões, da TV Globo, e algumas mini novelas para a televisão do Paraguai.
Em 1997 ganhou o Austrian Children Book Award, na Áustria, pela versão alemã do
livro CRIANÇAS NA ESCURIDÃO (Kinder im Dulkern) e o Blue Cobra Award, no Swiss
Institute for Children-s Book.
ENTREVISTA:
1 –
Fico muito honrado por iniciar essa seção de entrevistas com um dos maiores
roteiristas brasileiros de HQ´s, na minha opinião, Julio Emilio Braz, e começo
nossa conversa perguntando sobre o início de sua carreira como roteirista de
Historias em Quadrinhos na década de oitenta, me diz do que você se lembra
daquela época, dos ilustradores, mercado, roteiristas e a relação com as
editoras?
Resposta: Foi realmente engraçado. Estávamos no último trimestre
de 1980 e eu acabara de perder o emprego, gerente de retífica. Não conseguia
emprego e estava meio desesperado. Foi nessa época queum amigo de meu irmão,
que trabalhava na Editora Vecchi, falou que a editora estava publicando autores
nacionais e como eu escrevia, deveria levar meus trabalhos lá. Ele me deu o
nome do editor, Otacílio Barros, e eu, como não tinha nada a perder, fui lá.
Cresci lendo quadrinhos e tinha um monte de ideias para personagens e as sinopses
de várias histórias. Levei as minhas ideias e o Ota realmente foi muito legal.
Leu tudo pacientemente, mas me disse que as revistas que publicavam, noves fora
Ken Parker e Tex (entre outros), que eram western e material importado da
Italia, se destinava ao público leitor de terror. Não sei se ele notou meu
desânimo, mas pinçou um dos personagens que eu levara (um capa & espada que
se passava no Recife, durante a Invasão Holandesa no século XVII), e sugeriu
que eu o transformasse num personagem de terror. Na hora que o Ota estava sendo
apenas gentil ou estivesse fazendo jus a cara de louco que eu imputara a ele
desde que entrei em sua sala. Mesmo assim topei e foi deste modo que o Pedro
Salvaterra, nome do meu personagem, se transformou em Jesuíno Boamorte, um
morto-vivo que lutava contra os holandeses. Naquela época a revista Spektro,
onde a história foi publicada, tinha uma pesquisa no final de cada número e os
leitores gostaram da história e o Ota pediu mais. Vale salientar que grande
parte do sucesso da série se deve ao excelente Zenival Ferraz, cujo traço
refinado e a sólida pesquisa iconográfica, deram um plus no trabalho. Dali em
diante fui escrevendo e sendo aceito nas outras revistas da Vecchi. Trabalhei
com gente boa de verdade como Otto, o próprio Zenival, Julio Shimamoto, Colin,
e através desses trabalhos e contatos fui alcançando as editoras paulistas e a
curitibana Grafipar, onde, inclusive, comecei a fazer roteiros eróticos.
Naqueles anos 80 e até meados de 90, havia muitas publicações (muitas, bem
efêmeras, vale salientar) abrindo as portas para gente do quilate do Mozart
Couto, Rodval Matias, Bené Nascimento, Deodato Filho, entre tantos, muitos
deles que acabariam alcançando até o mercado estrangeiro, particularmente o
norte-americano, como é o caso do Bené (Joe Bennett) e o Deodato (Mike
Deodato). Havia certo amadorísmo na coisa toda, mas muita criatividade e
imaginação. Existiam maravilhosas impossibilidades como as revistas da Editora
D’Arte, do grande Rodolfo Zalla, produzidas sabe-se lá como, mas que realmente
sustentou muitos caras de talento (ouso dizer aqui que Zalla foi um dos caras
mais honestos com que lidei até hoje; os chequinhos que mandava pelos trabalhos
chegavam direitinho e em todas as ocasiões que precisei, ele me ajudou
imensamente, aoponto de, acredito, ter comprado mais roteiros meus que
conseguiu efetivamente ilustrar e publicar), ou o entusiasmo juvenil do Franco
de Rosa, outro grande acrobata daquela indústria meio louca mas muito
produtiva. Outra coisa interessante era a enorme quantidade de fanzines que em
muitas regiões do país, como o Nordeste, serviam de espaço para a divulgação de
autores locais.
2 –
Bem considerando que naquele tempo, e creio como agora continua sendo muito
difícil roteirista de quadrinhos viver somente disso, era natural você buscar
outros meios de sobrevivência que não se resumisse as Hqs, Isso nos leva a
perguntar se a transição das Hqs para a literatura, especificamente a
adolescente em que você se destaca notadamente aconteceu naturalmente ou teve
alguma dificuldade?
Resposta: Nem tanto. Escrever é escrever. Salvo as necessárias
adaptações a cada gênero, a fórmula é sempre a mesma: ter a ideia e tirá-la da
cabeça para aprisionar no papel. Realmente, para o roteirista e principalmente
naqueles tempos, era difícil viver apenas da venda dos roteiros até porque as
editoras também lidavam com muitas dificuldades na busca de espaço e aceitação
num mercado majoritariamente dominado pela produção estrangeira. Por isso,
enveredei inicialmente paraa produção de livros de bolso. Escrevia basicamente
western para editores como Monterey, Cedibra, Nova Leitura, entre outros, e
cheguei a me valer de 39 pseudônimos diferentes. Aliás, foi exatamente por
conta deste tipo de trabalho que acabei na literatura infanto-juvenil. Eu
estava saturado de escrever bang bang e pior ainda, um dia me peguei frente a
constatação de que sabia mais sobre o índio norte-americano (ainda sei,
confesso) do que sobre o índio brasileiro, ou seja, eu “estava”
(geograficamente) no Brasil mas não “era” brasileiro. Filosofias aparte, comecei
a ficar encafifado. Adoro enviar cartões de Natal (mesmo hoje, com essas
tecnologias modernas, meus amigos mais íntimos recebem o bom e velho cartão) e
estávamos no Natal. Fui a uma papelaria do meu bairro para comprar alguns e
encontrei um cesto onde havia vários livros infanto-juvenis em promoção.
Comprei por curiosidade e nem cheguei a lê-los. Ao mesmo tempo, estava em São
Paulo e um grande amigo da época (e sumido) Roberto Kussumoto, que ilustrava
muitos de meus roteiros, principalmente erótico, e foi meu guia quando eu ainda
não sabia andar por São Paulo, me apresentou ao então editor da Editora FTD,
Lino de Albergaria, pois havia falado com ele que pretendia escrever juvenis e
o Roberto ilustrava para eles. Fomos apresentados e o Lino pediu que eu
mandasse alguma coisa. Eu havia lido no Jornal do Brasil um artigo sobre
animais brasileiros em extinção e era fã de Jack London, cujo livro que mais me
impressionou fora “Chamado Selvagem”. Na matéria falava sobre o lobo-guará e eu
pensei na história do London. Uma não tem nada a ver com a outra, mas falavam
de cães, lobos e eu escrevi SAGUAIRU, meu primeiro juvenil. Não deu certo na
FTD, pois quando mandei o livro, o Lino não estava mais lá e a editora que se
encontrava em seu lugar não se interessou pelo original. No entanto, eu já
tinha o livro pronto e comecei a procurar uma editora para ele. Acabei na Atual
Editora (curiosamente a editora que publicara os livros que euhavia comprado na
papelaria no Natal), onde um sujeito muito gente fina, Paulo Condini, acreditou
no texto e o publicou. Bom, o livro saiu, em 1989 me deu o Prêmio Jabuti da
Câmara Brasileira do Livro de autor revelação e eu me entusiasmei e resolvi me
dedicar mais ao gênero. Hoje são quase duzentos títulos publicados e prêmios (e publicações)também fora do Brasil.
3 – Nessa
perspectiva sinto a necessidade de saber sua opinião a respeito da
possibilidade de considerarmos quadrinhos uma espécie de literatura?
Eu aprendi a ler com quadrinhos. Portanto, quadrinhos é
literatura, hoje mais do que nunca. Talvez a mais indicada para o público
iniciante, pois alia o visual à escrita. Para quem ainda teima em não
aceitá-los como tal, vale a pena citar nomes de autores como Neil Gaiman, Allan
Moore, entre outros, que hoje estão entre os grandes autores de sua época de
literatura fantástica.
4 – Pois
bem, gostaria nesse momento de lhe perguntar se tem lido alguma das Histórias
em quadrinhos produzidas no país na atualidade, e se leu qual foi sua impressão?
Resposta: Algo que tem me impressionado sobremaneira é a nova
tendência de adaptação de clássicos da literatura para os quadrinhos. Não que
seja uma grande novidade. A Editora EBAL, lá para os idos de 40/50 do século XX
já fizera muitas adaptações. No entanto, o que espanta agradavelmente é a
qualidade dos trabalhos.
5 – Considerando
que a evolução dos roteiros complexos já tem um tempo, como podemos notar nas
HQs atuais, em termos de roteiros de Histórias em Quadrinhos você tem algum
roteirista preferido seja ele atual ou do passado que te influenciou?
Resposta: Sempre adorei Neil Gaiman e continuarei fã de
carteirinha do cara. No entanto, um roteirista que me impressionou desde que li
a primeira de suas histórias foi Giancarlo Berardi, autor, junto com Ivo
Milazzo, do western Ken Parker. Suas histórias são impressionantes. “Adah”, bem
como outras tantas (chega a ser difícil escolher), ficaram para sempre em minha
memória. Lamentavelmente, em uma de minhas mudanças, eu perdi toda a minha
coleção dos tempos da Editora Vecchi (e gostaria de readquiri-la) bem como
todos os 412 bolsolivros de western que escrevi (estou recuperando agora,
adquirindo em sebos pelo país).
6 –
Muito bem, sinto a necessidade de lhe perguntar como era o processo de
construção de seus roteiros de histórias em quadrinhos. Havia muita pesquisa,
utilizava referências, ou era mais intuitivo mesmo?
Resposta: Sou apaixonado por História e inclusive acabo de
concluir meu curso de Licenciatura em História na Unirio. Além de gostar de
trabalhar com temática histórica, gosto de pesquisar muito, o que faço e mesmo
ao fazer, já gosto de pensar em termos do estilo de desenho que gostaria de ver
associado ao que estou escrevendo. Anoto tudo o tempo todo (nomes, sugestões de
títulos, apelidos que ouço, sou um colecionador de coisas). Portanto, sou
metódico ao bolar um roteiro. Obviamente começo com uma ideia e faço igual a um
camelo, fico ruminando a ideia até por anos, construindo-a pacientemente na
cabeça. Anotada a ideia em uma sinopse resumida, construo o que chamo de
esqueleto. Trata-se de uma ficha onde anoto os nomes dos personagens e locais
onde ocorrerá a história. Descrevo física e psicologicamente os personagens e
fisicamente os locais (por vezes, arrisco até fazer plantas e desenhos).
Posteriormente, calculo mais ou menos quantas partes ou capítulos terá a
história e em cada número descrevo a ação principal em torno da qual vou
paulatinamente desevolvendo não só a história quanto a hipótese dos vários
diálogos e situações. Finalmente escrevo a primeira história, ou seja, capturo
a ideia. É o texto bruto sobre o qual ireitrabalhar para tirar excessos,
redundâncias, amarrar bem a narrativa. Estando satisfeito, envio o material
para a editora ou diretamente para o desenhista/ilustrador.
7 –
Sei que você trabalhou com muitos Desenhistas fantásticos nos anos 80 e gostaria de conhecer como era o processo de
criação de historias em quadrinhos com eles e também gostaria de saber se tinha
algum desenhista preferido daquela época que trabalhou contigo e lhe causou uma
boa impressão?
Meu preferido desde sempre foi o Mozart Couto. Fizemos muitas
coisas juntos e mesmohoje, eu o chamo para ilustrar muitos de meus livros. No
entanto, lidei com uma turma bem legal como o Flávio Colin, o Shimamoto, Rodval
Matias, Seabra, Kussumoto, Otto e por aí vai. Muitas vezes eu escrevia os
roteiros e mandava para a editora que aí sim enviava para eles. No entanto, em
alguns casos, o trabalho foi direto. Fiz com o Mozart um personagem infantil
chamado Tambatajá, para um editor belga, e tínhamos longos papos pelo telefone
em cima do que eu escrevia. Lembro também que fiz um material legal com o
Rodval Matias para o mesmo editor, Aventureiros da Solidão, sobre bandeirantes,
e uma vez passei um tempão discutindo com o Rodval sobre uma cena onde um dos
bandeirantes matava uma sentinela índio antes de seu grupo atacar a aldeia.
Acontece que a sentinela era um menino e aquilo tocou a sensibilidade paterna
do Rodval. Nós ficamos mais de horano telefone discutindo, ele querendo que eu
tirasse a cena ou aumentasse a idade da sentinela, e eu fincando pé. Hoje é engraçada,
legítima discussão entre esquizofrênicos, mas foi tenso. De qualquer forma, foi
um trabalho lindo e até hoje inédito no Brasil. Fiz também um trabalho legal
com Arthur Garcia da Rosa, Cruzadinhos, que era uma espécie de Asterix
português que ficou bem bacana (este chegou a ser publicado no Brasil, mas a
edição fora do Brasil eu não cheguei a ver).
8 – Se
possível for você poderia comentar como era o contexto de produção das hqs
naquela época e qual a diferente com a produção atual?
Resposta: Como disse no
início, as coisas eram menos profissionais nas editoras que publicavam 100% de
material nacional. A estrutura era pequena, a distribuição problemática e as
dificuldades, enormes. Muitas revistas tinham vida curta e os pagamentos eram
irregulares. Havia o mercado de produção nacional, mas associada a personagens
estrangeiros como os personagens da Disney publicados pela Abril (Zé Carioca,
entre outros) eo Recruta Zero (escrevi roteiros para ele). Havia o Maurício de
Souza e o Ziraldo, mais profissionais. No entanto, a coisa era incipiente, para
dizer o mínimo. Hoje tudo é bem mais profissional até pelo fato de muita gente
boa brasileira estar publicando fora e os meios de produção permitirem
produções independentes de qualidade. A tecnologia também conspira a favor com
grandes autores publicando seu material diretamente na Internet ou se valendo
de mecanismos de autoprodução como crodwfunding.
9 – Sabemos
que você é um grande roteirista além de ter contribuído para as HQs e
influênciou muitos roteiristas atuais e que também trabalhou como roteirista em
series e programas de tv, mas gostaria de saber se há diferença em escrever em uma
mídia ou em outra e como foi a transição de uma para outra?
Resposta: Nenhuma diferença. Existem adaptações a serem feitas,
mas não vejo muita dificuldades para, por exemplo, um roteirista de quadrinhos
escrever roteiros para a televisão e o cinema. Pelo contrário, tal experiência
agrega valores, pois o roteirista de quadrinhos em certa medida ilustra (pelo
menos mentalmente) o roteiro que está escrevendo. Realmente não há diferença.
10 –
Esta última pergunta é algo que algumas pessoas como eu gostaríamos de fazer,
mas que nunca temos a oportunidade adequada para peguntar, sobre ainda podemos
ter a esperança de Júlio Emilio Braz voltar pelo menos uma vez a fazer roteiros
de HQs? Isso é Possível?
Resposta: Claro. Minhas primeiras leituras foram os gibis que
minha tia, empregada doméstica, levava da casa do patrão dela para mim. Foram
os gibis que uma vizinha, dona Bela, levava do filho dela (eram gibis de
autores brasileiros de editoras como Taika). Adoro quadrinhos. Consumo
ferozmente até hoje. Tenho muitas ideias arquivadas e roteiros prontos,
deixados em algum lugar de meu escritório. Agora mesmo terminei um texto que
mistura literatura e quadrinhos que o Mozart está ilustrando para mim,
lembranças e influência de Moonshadow, outro texto deslumbrante que as novas
gerações deveriam conhecer.
Agradeço
desde já a imensa honra que tive de entrevistar esse grande e fantástico
escritor que há muito me influenciou e me ajudou a ler e escrever, foi e é o
formador de vários leitores e ainda continua sendo, graças aos céus. Por isso
que digo, considerando que o universo dos quadrinhos em termos de ganhos
materiais é ingrato e até mesmo perverso. Sei disso já tenho a minha cota de
consciência sobre o assunto. Entretanto, vendo agora quando estou diante de
alguém como o Julio Emilio Braz que só conheço de foto e de ter lido muita
coisa sobre ele e de ter amigos lá dos idos anos oitenta que me falaram sobre
esse grande escritor me faz acreditar que esse “universo” ainda é mágico e
lindo. Talvez por isso, pelo quadrinho me lembrar épocas mais inocentes e até
mesmo ter me ensinado muitas coisas através daqueles roteiristas maravilhosos
que mesmo sendo mau pagos e não tendo o reconhecimento que mereciam faziam e
ainda fazem por amor a arte de contar historias e fazer as pessoas sonharem com
ele. Valeu a todos por conhecerem um pouco sobre esse ícone das HQs nacionais.