Já sai de casa querendo voltar e se arrepende de sair antes mesmo de chegar. Faz uma trança no
cabelo enquanto caminha, usa os vidros das vitrines como espelho, faz hora,
não tem pressa, matar o tempo lhe envaidece.
não tem pressa, matar o tempo lhe envaidece.
Pensa na sua
rede sob o pé de amora. Penélope Cruz é o nome dela... da rede, armada no pátio
da vivenda a espera dela. Sabe que Penélope estará lá quando voltar, por isso
não se adianta e curte a caminhada. Até que...
Um homem asqueroso passa encarando-a na rua,
ela distraída trançando o cabelo nem dá importância para o fato de que ele
dobrou numa esquina um pouco a frente e espreita sua passagem pelo cruzamento.
Ele, o motoqueiro, da à volta e acompanha lentamente... ela percebe finalmente e
se vê encurralada, lembra “do jeito de diabo gosta”, a expressão que
ouviu outra vez de um tipo como aquele, com o cotovelo para fora da janela do
carro velho, algum domingo comum desses. Ficou com medo, afinal nos postes pelo
caminho cartazes (de) anunciam mais de 300 casos de estupros em menos de um ano
naquela cidade que (agora) habitara. Tem medo sim, mas põe uma cara brava enquanto olha em volta a possibilidade de socorro, já pensa no pior, a rua parece deserta,
então apressa o passo e prepara-se pra correr. Avista duas pessoas vindo mais a
frente, enquanto o motoqueiro ainda a acompanha, tudo parece durar uma
eternidade. O motoqueiro percebe as pessoas se aproximando e acelera a moto, ainda
observando pelo retrovisor. Ela num instante impulsivo e libertador, estira o
dedo do meio para o homem que a violentou com o olhar. As duas
pessoas que cruzaram com ela estirando o dedo não entendem nada. Tudo bem, já
era. Passou...
Ela continua
o caminho... arruma sua trança, confere o reflexo numa vitrine e percebe que
falta um toque. Mais a frente encontra uma roseira branca e de lá colhe um
botão, prende ao cabelo e continua. Sua vaidade se mede na sombra do chão e no
vidro/para-brisa dos carros estacionados.
Volta a
pensar na Penélope, no pé de amora e nos passarinhos azuis catando frutinhas no
pé. Como tinha inveja daqueles. Pelas amoras também, mas principalmente porque
eles estavam livres dos olhares de homens nojentos como aquele que ela
enfrentou.
Será que são
azulados de tanto comer amora? Ela pensa. Tenta ficar horrorizada com a violência
que sofreu, com a apatia da cidade e de dos moradores, mas não consegue... só
pensava nas amoras no chão, que deixou de colher, e na Penélope solta ao vento
da tarde, sob a sombra da arvore. Era sensível as coisas pequenas.
Mas porque
sair de casa se tudo que queria era passar o tempo lendo seu livro deitada
naquela rede? Ah, festinha de criança, era isso que a tirava de casa, comida
boa, docinho, bolo confeitado. A barriga faz barulho e confirma! Ela sabe que
na volta, empanturrada, a sua rede ainda a espera.
Ah! Não esquecer de fazer um “pratinho” com salgadinhos e docinhos da festa pro amigo que ficou em casa estudando.
Ah! Não esquecer de fazer um “pratinho” com salgadinhos e docinhos da festa pro amigo que ficou em casa estudando.